Por
que a História ainda é importante?
Palavras
a novos historiadores
Professor Dr. Carlile Lanzieri Júnior
(UFMT)
Queima de livros na Praça da Ópera em Berlim, Alemanha. Entre
10 de março e 21 de junho de 1933, em diversas cidades alemãs, seguidores do
nazismo queimaram livros em locais públicos. As datas coincidem com a chegada
de Adolf Hitler (1889-1945) ao poder. Um grande número de estudantes estava
envolvido nessas ações cujo objetivo era eliminar toda forma de pensamento
contrária ao regime recém instalado (Imagem disponível em <http://historiacomgosto.blogspot.com.br/2016/04/a-grade-queima-de-livros-de-berlim.html>).
Na
noite do dia 06 de outubro de 2016, participei da mesa redonda A história na era das incertezas, no
Departamento de História da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT - Campus
Cuiabá). Juntamente com a Professora Dra. Thaís Leão Vieira (UFMT - Campus
Rondonópolis), apresentei minhas considerações sobre o papel do historiador
diante do cenário político brasileiro atual. Duas horas de exposição e debates
diante de uma plateia de cerca de 40 pessoas. Um número alto para uma atividade
realizada no fim do semestre letivo com avaliações e trabalhos a bater na
porta. O ponto principal de concordância entre mim e a minha colega de mesa: a
passos largos o estreitamento intelectual e a cultura da vaidade que dia a dia nos
consomem põem em cheque a existência das Ciências Humanas (ARMITAGE &
GULDI, 2016, p. 22-25). Na esteira deste processo, a História parece sofrer
ainda mais com os danos nefastos causados por este infeliz expurgo cujos
retoques finais são dados por governantes que tem como lastro a naturalização
de práticas fascistas. A fórmula que explica tudo isso: menos Ciências Humanas,
menos democracia e tudo que ela representa (cf. NUSSBAUM, 2015).
Entre
o apagar das luzes do Auditório I do Instituto de Geografia, História e
Documentação (IGHD) e o retorno para casa, iniciei uma viagem mental pelo ano
de 2016, outro que entrará para a história como aquele que não terminou. Depois
de tanto tempo com a atenção totalmente voltada para o estudo da História da
Idade Média, percebi que boa parte do corrente ano fora entregue a reflexões
acerca do papel do historiador na sociedade contemporânea assim como as razões
que permitiram o crescimento de uma onda de críticas e perseguições contra ele.
Algumas assumidamente violentas. A fogueira da intolerância fascista está acesa
e não faltam mãos dispostas a trazer mais lenha. Sei que outros já percorreram
esse caminho e produziram reflexões sobremaneiras melhores que aquelas que aqui
irei propor. Todavia, dar-me-ei a permissão de dizer algo sobre a profissão que
há tempos abracei, profissão que objetiva a transmissão e, sobretudo, a
produção de conhecimento de maneira crítica e honesta. Com armas no chão e
flores nas mãos, é preciso resistir sempre, com diálogo e perseverança, por
mais herméticos que possam ser os interlocutores (TIBURI, 2016, p. 23-28).
*
"[...] nunca regresso com o mesmo caráter
com que saí de casa; algo do que já pusera em ordem é alterado, algo do que já
conseguira eliminar, regressa" (LÚCIO ANEU SENECA, Cartas a Lucílio, Livro I, carta 7, 1, p. 14)
"Uma excelente máxima: pois sempre que o
homem sábio se separa da multidão dos comuns, ele está acompanhado por uma
multidão de nobres pensamentos, embora o ignorante pense que ele esteja ocioso
por não fazer algo público" (GUILHERME DE CONCHES, Dragmaticon philosophiae, II, 1, p. 21).
A
solidão mencionada nas linhas e entrelinhas de uma das epístolas do filósofo
estoico romano Lúcio Aneu Sêneca (4 a.C - 65 d.C) e nos escritos do mestre
Guilherme de Conches (1090-1154) é a solidão que faz morada no coração dos
historiadores, pelo menos daqueles que dignificam esta profissão. Não se trata aqui
da solidão dos tolos desajustados ou dos antipáticos, mas da solidão
contemplativa capaz de abrir veios para que os pensamentos possam fluir com a devida
calma que os decibéis elevados da turba ensandecida não costumam permitir. Particularmente,
não conheço maneira melhor para conseguir ler, pensar e escrever. Não
necessariamente nesta ordem, mas na medida adequada.
Pensar
como todos pensam, seguir contente os movimentos do rebanho, curvar-se silencioso
diante da voz do líder, estes não são os comportamentos esperados de um bom historiador.
O distanciamento prudente permitido pela solidão contemplativa é sua companhia
e invólucro protetor. A distância segura permitida pela solidão senequiana e do
mestre de Conches mantém o historiador a salvo dos riscos de banalizar a
realidade sob os efeitos nocivos de esquemas pré-fabricados (GINZBURG, 2001, p.
41). Às voltas com os próprios pensamentos e com os conhecimentos daqueles com
os quais dialoga (letrados ou não), o historiador oferece seus préstimos à
civilização. E assim ele faz História. Todavia, nem todos são (ou foram)
adeptos de tais orientações. Sigo com dois exemplos que considero marcantes e ilustram
a primeira parte de minhas argumentações. Vamos ao primeiro.
Adolf
Hitler e seus asseclas enlouquecidos usaram à exaustão a palavra "História".
Sem remorso, pilharam o passado para legitimar a propaganda idológica do
partido nazista que enfeitiçou milhões de pessoas que passaram a crer que
estavam a fazer a história de um povo destinado a vencer e subjugar aqueles que
consideravam inferiores (KOSELLECK, 2013, p. 221-222). Na voz desses
personagens e de tantos outros entregues às carícias do totalitarismo a
prometer dias melhores, o verbo "fazer" ganhou um sentido impositivo:
a ação para obter ou corrigir algo com vistas a um futuro grandioso. Neste
futuro de contornos bem definidos na teoria, estaria reestabelecido o rumo da nação
outrora perdido. Infelizmente, não são poucos os que creem ser este o papel dos
historiadores, filósofos e tantos outros pensadores ligados às Ciências Humanas.
O brilho intenso da imaginação totalitária os cega (cf. RAZZO, 2016).
Antes
do próximo exemplo, pausa para uma necessária pergunta: será esta a História a
emergir de nossas pesquisas com o intento de impor o que as pessoas devem fazer
e/ou contra quem devem agir? A resposta é simples e deve ser escrita com letras
garrafais: NÃO! Todos que se imaginaram capazes de "fazer história"
em benefício de uma nova sociedade sustentados por engenhosas ideologias pseudorrevolucionárias
realmente entraram para História, mas não da maneira como um dia desejaram (e isso
vale para os nazistas, assim como para os comunistas, maoistas, fascistas, liberalistas
e todos os outros puídos ideólogos que assim pensaram).
O
segundo exemplo. Da primeira metade do século XX para um episódio ainda bem fresco
na memória de todos. Há poucos meses, os defensores de Donald Trump (1946- ),
magnata intempestivo, midiático e fanfarrão recém-eleito presidente dos Estados
Unidos da América, vigorosamente afirmavam que aquela vitória simbolizava o surgimento
de um líder em condições de recuperar a grandeza econômica daquele país – Make America great again (Tornar a
América grande novamente) foi o slogan
da campanha vitoriosa de Trump. Grandeza vivida sobretudo nas décadas seguintes
ao fim da II Guerra Mundial (1939-1945). Os "trinta anos gloriosos"
ou "a era de ouro", como bem definiu Eric Hobsbawm (1917-2012) em seu
livro clássico sobre o século XX (1995, p. 253-281). De forma explícita, messiânica
até, dizem confiar que, sob a batuta do novo político mais importante do
planeta, poderão voltar ao passado e reescrever (ou fazer) a própria história.
Desta vez, de acordo com o final que estabeleceram como correto.
Estaríamos
diante do retorno da doutrina do destino manifesto cunhada nos EUA ainda na
primeira metade do século XIX? Com grande receio, acredito que seja sim a
resposta a esta nova indagação... Ao bailar faceiras sobre um campo minado, estas
pessoas almejam um final que reestabelecerá a supremacia dos homens e das mulheres
de pele branca, detentores pomposos de capital econômico e cultual que creem
ter sido conspurcado por décadas de globalização que tomou de assalto o
território norte-americano (HOBSBAWM, 2007, p. 52). Quem viver verá (cf. também
<http://www.bbc.com/portuguese/38069641>). Confesso que fico sobremaneira
triste por ver a que ponto alguns exemplares da espécie humana chegaram. Fora
do armário, a eugenia volta faceira a arrastar correntes.
Nos
dois breves exemplos citados, o "fazer História" foi tomado como sinônimo
da retomada de algo, a promessa de reviver ipsis
litteris uma era de ouro outrora perdida. Sem dúvida, trata-se de uma
concepção tacanha, injusta e distante da compreensão que aqui proponho. Com
esses e outros tantos exemplos possíveis, fica patente que, em função de seus
incontáveis pontos de entrada, o passado é facilmente manipulável: irá com
todos que estiverem dispostos a seduzi-lo (JENKINS, 2014, p. 21). Destes, muitos
podem acessá-lo e trabalhá-lo de acordo com suas intenções, boas ou ruins. Ter
esse material em mãos é ter a chance de empunhar uma arma poderosa. Quando carregada
com cartuchos de grosso calibre ideológico, dispara rajadas de verdades
absolutas contra os que ousam cruzar seu caminho. Muitos tombaram pela ação daqueles
que acreditavam fazer história. A bem da verdade, estes nunca a fizeram da
maneira como intentaram, apenas deixaram seus rastros sujos de sangue e nenhuma
glória para que os verdadeiros historiadores pudessem enfim compreender os
significados de suas atitudes no tempo e no espaço. Isso sim é fazer História.
História que se ensina, História que se escreve, História que nos permite a
compreensão profunda de nossas conquistas e misérias. História indispensável que
nos torna maduros pelo exercício contínuo da reflexão. Enfim, História que não
destrói, mas que edifica a partir do trato com a diversidade e a procura pela
verdade.
*
A
História não é o passado. O passado não é a História. A História só passa a
existir de fato quando os vestígios do passado são devidamente agrupados,
interpretados e reinterpretados pelos historiadores – e outras pessoas que
desejam dizer e escrever algo sobre a trajetória humana (GAY, 1990, p. 178). A partir
de várias escolhas teórico-metodológicas possíveis, o historiador estabelece
uma narrativa de síntese cujo objetivo central é explicar aspectos do passado
humano (JENKINS, 2004, p. 24-26). A busca sincera pelo conhecimento é o
instrumento de navegação que o guia nesta empreitada. Embora os vestígios de
tempos pretéritos possam ser úteis para elucidar diversas questões, algumas de
natureza pragmática, como a obtenção da dupla nacionalidade europeia ou o
reconhecimento do território ocupado por uma comunidade quilombola, esta não
pode ser a finalidade única ou a mais importante da História (OAKESHOTT, 2003,
p. 45-46, 52-55 e 58-60). Acima de tudo, ela deve ser o desejo incessante pelo
conhecimento das experiências humanas no tempo e no espaço. Há tempos, tatuei essa
premissa na epiderme de minha alma. Das cores impressionantes da Capela Sistina
à obscuridade de Aushchwitz, da genialidade de Caravaggio (1571-1610) à conduta
totalitarista do camarada Mao (1893-1976) ou a linha dura seletiva de Carlos
Alberto Brilhante Ustra (1932-2015), tudo que é do homem faz parte do metiê do
historiador que tem o dever de nos lembrar o que somos e o que fizemos, de bom
ou ruim. Qualquer tentativa de distorção com vistas a fomentar algum tipo de
ideologia deverá ser encarada como um ato de desonestidade intelectual. Simples
assim, meus caros.
A
condição humana é por demais complexa para ser tomada como pertença exclusiva do
diminuto presente (RAZZO, 2016, p. 16 e 194). Com base nesta premissa e nas que
estão dispostas nos parágrafos precedentes, confio que a História alarga continuamente
nossa capacidade de compreender algumas das incontáveis nuances da aventura de nossa
existência. Existência que se faz dentro de um todo maior, rico e controverso.
Um todo do qual o historiador somente alcança pequenas partes, mesmo com
décadas de labuta ininterrupta. Assim, o fazer História é um ato de ousadia, um
rompimento com as amarras do tempo efêmero de nossas vidas cotidianas e uma
abertura ao diálogo generoso com as inúmeras gerações que vieram antes, com
suas saudáveis e necessárias convergências e divergências. Saber acumulado que
resistiu ao tempo e do qual seria um equívoco abrir mão (SCRUTON, 2011, p. 124).
O resultado esperado dessa elevação cidadã: conhecimento envolvido pelo manto acolhedor
da tolerância e da democracia (NUSSBAUM, 2015, p. 11-12).
Pelo
que foi exposto até aqui, não há dúvidas de que a distinção entre passado e
História não pode ser ignorada. Do mesmo modo deve ser pensada a influência das
relações de poder deste e de outros tempos presentes sobre as indagações feitas
aos vestígios do passado. Se as quantidades disponíveis destes vestígios nem
sempre apresentam grandes transformações, por que as pesquisas não cessam? Por
que os historiadores continuam a vasculhar arquivos vistos e revistos por
tantos outros durante anos a fio? As respostas estão nas mudanças observadas no
mundo que nos cerca. Demandas que hoje são fundamentais não o eram há duas ou
três décadas. Demandas que eram inquestionáveis até há pouco tempo não são mais
para os novos historiadores (os movimentos negro e feminista estão aí e não me
deixam mentir). Assim, as indagações construídas nas investigações que surgem a
todo momento permitem a proposição de reflexões novas e amadurecidas. Em
perspectiva, essas novas reflexões dizem muito acerca da maneira como as
investigações históricas foram desenvolvidas em outros contextos, pois o
passado não existe independente do presente no qual o historiador está inserido
(TROUILLOT, 2015, p. 15).
Neste
sentido, um outro exemplo didático interessante é a crise de refugiados que
toma conta de boa parte dos países da Europa ocidental. No século XIX e na
primeira metade do século XX, houve situações semelhantes. Como os governantes
de então lidaram com elas? Que leis foram criadas ou revogadas para dar conta
da nova realidade? Como as populações nativas lidaram com esses estrangeiros a
se multiplicar pelas ruas? Como os defensores dos direitos humanos trataram os
apátridas com os quais se depararam de uma hora para outra no auge do
nacionalismo? (ARENDT, 1976, cap. 5). Vale repetir: a História ensina a pensar
com base no conhecimento acumulado. E é justamente esse conhecimento maturado que
traz à tona o fato de que a Europa sempre foi um território cortado por fluxos
migratórios de variadas origens, que o Mediterrâneo é um mar cuja fácil
navegação propicia conexões, e que qualquer análise genealógica mais profunda
põe em cheque as afirmações dos que defendem a existência de uma cultura
europeia erguida sobre pilares cristãos independentes da Ásia e da África
(GEARY, 2005; GOODY, 2008, p. 11-36; SILVEIRA, 2009, p. 645-657; GUARINELLO, 2014, p. 47-57).
Ao
caminhar um pouco mais no tempo, é factível perguntar se analogias explicativas
podem ser feitas entre o que hoje acontece em algumas regiões da Europa
ocidental e o que ocorreu no Império Romano com as migrações germânicas
apontadas por uma historiografia mais tradicional como as responsáveis diretas
pelo fim trágico de um império um dia grandioso (GIBBON, 1989). As disputas
entre França e Alemanha no contexto imperialista do século XIX e início do XX
também influenciaram a maneira como os historiadores destes dois países
enxergaram os supostos embates entre germânicos e romanos na Antiguidade (SILVA,
2008, p. 20-21). Como é possível observar, a História não se repete nem como
farsa nem como tragédia. Ela simplesmente ensina, faz pensar duas ou mais
vezes, afinal o passado é um manancial de informações e assim deve ser explorado.
E o futuro? Como diz aquele velho ditado, este a Deus pertence. Até lá, a
História e os historiadores terão como missão formar humanos reflexivos a lutar
por um mundo melhor, com menos ideologias e mais ética e tolerância.
*
Observar
as nuances da escrita dos historiadores, seus estilos, suas opções, suas
referências historiográficas e afinidades intelectuais, enfim, sua época. Esses
são procedimentos analíticos valiosos, pois tudo isso interfere nas narrativas
e nas maneiras pelas quais estes profissionais reconstroem o passado (GAY, 1990,
p. 17-31). Com efeito, os recônditos mais profundos da prática do historiador
transformam-se também em fonte de pesquisa ao lado da documentação de época (ALBUQUERQUE,
2007, p. 21 e 24). Nesta toada, um completa o outro. Na verdade, um não existe
sem o outro. Rever a formação e os percursos feitos pelos historiadores é
reavivar como uma determinada época olhou para as que a precederam, é compreender
como certos eventos foram agraciados com o selo de "históricos" a
custa do silêncio providencial ou involuntário que cobriu outros tantos. O
romancista russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881) diria se tratar de um encontro
com a "paisagem interior", neste caso, a do historiador.
Aos
poucos, o próprio senso comum acadêmico fomentado pelo acúmulo prolongado de
pesquisas acerca de um determinado assunto é desafiado e retirado de sua zona
de conforto. Vale sempre lembrar que autores não são autoridades instituídas das
quais irradiam verdades definitivas e defendidas por cerradas legiões de
aliados prontos para o embate (LATOUR, 2011, p. 73-74). Pelo menos assim não
deveria ser. As críticas e a autorreflexão existem para provocar e trazer à
superfície novos veios de pesquisa, lançar luz sobre searas não percorridas ou
percorridas a esmo (POPPER, 2007, p. 31, 39 e 50; RÜSEN, 2010, p. 55-56 2001,
p. 25). E tudo deve ser devidamente registrado para que outros pesquisadores
tenham acesso ao conhecimento produzido. Para uma melhor compreensão acerca da
escrita dos profissionais da História e de tudo que a envolve, por favor, caro leitor,
retorne aos primeiros parágrafos deste ensaio. Feita esta rápida digressão,
retome a sequência deste ensaio.
*
Se
o trabalho do historiador é escrever sobre o passado humano, a ele não é
permitido um retorno literal a este. Triste sina? Nem tanto. Diferente do que o
jovem Martin McFly e o Dr. Emmett Brown fizeram em De volta para o futuro [Back
to the future (1985)], icônica trilogia do cinema norte-americano da década
de 80 do século passado, o historiador é um prisioneiro de seu tempo. Ele jamais
verá com os próprios olhos a grande maioria dos acontecimentos e personagens
sobre os quais lê e escreve. Mas o que à primeira vista seria um problema
incontornável, logo se transforma em um valioso benefício. Por gentileza, deixem
os devaneios da ficção de lado e acompanhem a minha linha de raciocínio.
O
distanciamento imposto pelo acúmulo incessante do tempo consente ao historiador
uma visão ampla dos fatos. No silêncio de um escritório ou em uma pequena mesa escondida
no fundo de uma biblioteca, ele segue suas pistas sem ser incomodado pela
truculência dos ancestrais da família Tennen (os impagáveis vilões do longa-metragem
acima citado). Bem informado, ele sabe o que aconteceu antes, durante e depois,
possibilidade vedada aos personagens com os quais lida, pois estes estarão
sempre submetidos aos limites temporais da própria existência. Além disso, protegido
pela distância, o historiador também tem livre acesso às diferentes maneiras
pelas quais as lembranças acerca de um determinado acontecimento repercutiram
em períodos posteriores sob a pena de outros historiadores, memorialistas e
afins.
Com
essas múltiplas referências ao alcance das mãos, ou pelo menos uma parte delas,
o historiador busca compreender a amplitude do contexto que tem diante de si e
as prováveis razões que levaram os protagonistas de suas histórias a tomar ("escrever"
ou "registrar" seriam aqui as palavras mais adequadas?) ou não
determinadas decisões e a amplitude dos efeitos destas. Portanto, mesmo que a
volta ao passado em uma máquina do tempo possa ser uma aventura tentadora a
lotar salas de cinema mundo afora, ela nunca dará a seus corajosos tripulantes
a compreensão profunda oferecida pelo contato direto com variegadas fontes
históricas, primárias e secundárias. Deste modo, a viagem dos historiadores é em
sua essência espiritual, e isso não é pouca coisa (GADDIS, 2003, p. 17-19 e
37-41).
Depois
de levantar pistas e compará-las, depois de ir ao encontro do que seus pares
escreveram e indagá-los, o historiador traz à lume as suas argumentações. Estas
jamais poderão ser um mero requentar de conhecimentos prontos ou a reafirmação
de esquemas teóricos prévios, mas um acréscimo de novos obtidos a partir do
diálogo com outros pesquisadores e das respostas que o próprio historiador produziu
para as questões que propôs. Ao historiador está vedada a alternativa fácil e
confortável de dizer que a natureza ou a intuição sozinhas lhe instruíram, pois
sabe-se que é sobre a historiografia e a documentação de época que ele ampara
suas teorias (GAY, 1990, p. 172; LATOUR, 2011, p. 150-151). Com o tempo, novos
argumentos e demandas sociais tornarão uma pesquisa considerada de ponta parcial
e datada. Este é o interminável ciclo virtuoso da História e das Ciências como
um todo (GAY, 1990, p. 191). E quando se vislumbra ao longe o encerramento de
uma pesquisa, outros horizontes de trabalho terão surgido (PROUST, 2014, p. 79-80
e 237). Assim foi e assim deve ser quando o assunto é a produção de
conhecimento que nunca cessa de se aperfeiçoar e se multiplicar. Uma arte. Contudo,
nada disso será possível sem o desenvolvimento de uma boa escrita.
Desde
os mestres antigos e medievais, a escrita de qualidade é uma das responsáveis
por elevar a condição humana. Esteio do mundo civilizado, ela permite a
reflexão constante e o aprofundamento das ideias em prol de argumentos consistentes
e superação de opiniões elementares. Através da escrita, o conhecimento é
transmitido às gerações seguintes. Sem dúvida, tarefas árduas, mas indispensáveis
ao bem da sociedade. No caso específico do historiador, é na dedicação à
escrita que ele amadurece suas ideias e absorve as de outrem. Pela escrita, ele
igualmente se submete a uma saudável autocrítica. A boa escrita conduz cada etapa
de seu trabalho. Não por um simples apelo à retórica, mas pelo desejo de
clareza e convencimento diante dos que aceitam acompanhar seu raciocínio. Em
termos complementares, a escrita é o exercício espiritual dos historiadores, é seu
processo civilizador interno.
Por
último, mas não menos importante: um bom texto tem o condão de trazer a
proscênio a maturidade intelectual de quem o elaborou. Maturidade que se faz
com paciência e constantes leituras. Esta é uma das regras pétreas da formação
do historiador, ou pelo menos assim deveria ser. Um texto confuso faz com que
boas ideias se percam nos labirintos tortuosos do hermetismo (GAY, 1990, p.
171). Lamentavelmente, esta confusão impede que o historiador seja lido por
seus pares, o que torna a ciência que faz uma ciência pela metade, uma vez que
ela não conclui seu ciclo de vida que vai do autor ao leitor (LATOUR, 2011, p.
59 e 160).
*
"A Terra é azul"
foram as palavras proferidas pelo cosmonauta soviético Yuri Alekseievitch Gagarin (1934-1968) logo após completar a primeira missão tripulada pela órbita
terrestre há quase seis décadas. A frase formada pelas quatro palavras de
Gagarin está no rol das que marcaram o breve século XX. Dita no auge da Guerra
Fria (1945-1991), elas hoje me servem de inspiração para tocar em um tema que
considero fundamental: a necessidade de se pensar e fazer uma História que
vença os vícios de um localismo estéril e que se conecte com os grandes temas
que pontuam os debates entre os principais centros de produção de conhecimento,
dentro e fora do Brasil.
Assim como o primeiro aventureiro
do espaço a olhar para o planeta Terra como um todo, o historiador pode e deve fazer
o mesmo ao puxar os fios de tramas do passado com o fito de tecer comparações,
compreender as conexões entre os povos e as maneiras pelas quais estes se
enxergam mutuamente. Movimentos migratórios, fronteiras, trocas econômicas e culturais,
formas de trabalho livre e escravo, comportamento sexual, democracia, xenofobia
e intolerância são apenas alguns exemplos de possíveis temas de pesquisa. Sem
dúvida, uma significativa ampliação dos horizontes e um combate aos males advindos
da pobreza da especialização incapaz de enxergar o que existe para além do
próprio umbigo (cf. LATTIER, 2016).
Nas três últimas
décadas, as pesquisas alcançaram níveis de especialização tamanhos que não são
lidas nem pelos próprios pares. Antes que alguma voz apressada se erga, é
importante frisar que leituras feitas por razões institucionais, como
qualificações e defesas de dissertações e teses, pareceres críticos para
revistas não contam. Uma ida aos congressos realizados em nossa área permite
esta triste constatação. Os recortes temáticos restritos são majoritários
(ARMITAGE & GULDI, 2016, p. 102-103). O apelo ao micro tão em voga ao longo
dos últimos trinta anos produziu efeitos colaterais com os quais temos que hoje
conviver. Com os olhos fixos nas folhas das árvores, perdeu-se a noção da
floresta. O grande público não especializado praticamente desconhece o que os
historiadores profissionais produzem. O espaço aberto foi ocupado por
economistas, cientistas políticos, jornalistas, entre outros.
Diante deste quadro, apenas
a autocrítica e a reelaboração das rotas permitirão que as pesquisas ganhem novo
fôlego. Nesse ínterim, o contato com públicos mais amplos possibilitará a
ruptura das amarras de um tacanho provincianismo intelectual a flertar com abordagens
pobres e descritivas. Continuar a insistir neste estreitamento imediatista apenas
nos tornará mais monoglotas no que se refere à humanidade, pois des te lado de
cá da fronteira não seremos capazes de debater as demandas que hoje conectam o
mundo (GINZBURG, 2000, p. 299).
Soldados alemães em trajes de inverno posam para foto aos
pés da estátua de Armínio, o Querusco
erguida na Floresta de Teutoburgo. De acordo com a tradição alemã, Armínio foi
um dos primeiros líderes germânicos a desafiar e vencer o poderio militar romano
ainda no século I. Sua figura foi resgatada séculos depois para servir de
exemplo da longeva luta dos alemães contra seus inimigos franceses. Erguida
estrategicamente na fronteira com a França no final do século XIX, o monumento
é hoje um local de visitação turística, mas ainda guarda as lembranças de um
passado no qual um mito foi criado para atender as demandas de políticas
nacionalistas ultra belicosas (Imagem disponível em
<http://i.imgur.com/Vkhd5PE.jpg>).
História
e poder caminham juntos. A bem da verdade, as relações de poder precedem a
escrita da História e influenciam na seleção das fontes e nas interpretações a
serem feitas. Silêncio e manipulação fazem parte deste jogo, que nem sempre põe
em debate o fato de que a sobrevivência de um vestígio do passado não necessariamente
indica a superioridade de um determinado evento ou personagem históricos
(TROULLIOT, 2015, p. 28-30 e p. 47-51). Neste caso, há muito mais entre o céu e
a terra do que nós reles mortais podemos imaginar. A História na qual acredito
e defendo dia a dia dentro e fora da universidade não pode se curvar aos donos
do poder, sejam eles de esquerda, centro ou direita, acadêmicos ou não.
Sinceramente,
fico preocupado quando vejo um estudante de História com uma camisa ligada a
algum partido ou movimento político. Se sua visão de mundo for submissa à sua
orientação político-partidária, ele sempre será parcial em suas análises. Sem
fazer força, tampará o sol com a peneira das evidências distorcidas e dirá que
análises que confrontam o que ele pensa são meros revisionismos
historiográficos, intrigas de uma oposição elitista. Não fará boa História. Uma
pena. O mea culpa feito pelo renomado
historiador inglês Eric Hobsbawm (2002, p. 219-220) sobre o prolongado silêncio
que manteve a respeito das atrocidades do regime soviético exemplifica a força irresistível
das ideologias sobre o indivíduo, mesmo que este seja um dos historiadores mais
bem sucedidos de nossa época.
Discursos
apologéticos são de fácil identificação. Normalmente, costumam simplificar a
realidade em prol das supostas verdades que desejam impor aos leitores e
cidadãos em geral. Fazem isso independente das variáveis contraditórias
inerentes a qualquer contexto histórico (DOMENEC, 2006, p. 21 e p. 34). Perde a
História, perde a humanidade, pois seguem a máxima de que doutrinar é preciso,
produzir conhecimento não. Ser simpático a alguma causa ou partido político é
um direito legítimo de qualquer indivíduo em uma sociedade democrática, seja
ele quem for. Porém, ao escrever, o historiador deverá se policiar e buscar a
verdade acima de tudo, doa a quem doer, custe o que custar. Se necessário for,
corta-se na própria carne. Mentir e distorcer nunca. Propaganda não é a nossa missão.
As
relações de poder sobre as quais falei há pouco também existem na academia,
esse reluzente palácio de cristal tantas e tantas vezes inexpugnável.
Determinados autores são tratados como fontes que emanam verdades definitivas. Questioná-los
é um sacrilégio que lançou boas pesquisas às chamas da fogueira do esquecimento.
Algo semelhante pode ser dito em relação a temas consagrados como política e
economia. Parece que apenas essas dimensões da vida humana são relevantes. Temas
como música e alimentação, atividades humanas vitais, são raríssimos no Brasil.
Boas críticas são saudáveis ao desenvolvimento do conhecimento histórico, assim
como a ampliação do leque temático. Portanto, não se trata de ignorar as
contribuições anteriores ou tecer comentários ácidos de teor pessoal, mas propor
novas questões e manter o moto da pesquisa. E não há como escapar do fato de
que o passado muda ao sabor dos ventos do presente que produz novas perguntas a
serem feitas ao passado que permitirá novas respostas. Um ciclo virtuoso do
conhecimento que indica que o passado é parte do próprio presente (ALBUQUERQUE,
2007, p. 33).
Bem,
se passado e presente constroem-se mutuamente, não há como fugir das demandas
impostas pelas transformações vividas pelas sociedades. O que era importante
para os historiadores das primeiras décadas do século XX não mais o é para os
deste início de século XXI. Certamente, seremos revistos pelos historiadores
dos próximos séculos. Não há como escapar. Este é o desenvolvimento natural da
ciência que fazemos, uma ciência em ação que não segue uma highway cujo destino pode ser antevisto em um mapa aberto sobre a
mesa antes da viagem, mas que promove avanços e recuos a fim de rever suas
afirmações e como estas um dia ganharam corpo. Conhecer bons autores,
compreender as facetas da historiografia e mergulhar na documentação são bons combates
que impedirão o historiador de caminhar sozinho, de sobreviver a partir de
opiniões ocas e infundadas.
Escrito
por Willian Golding (1911-1983), o livro O
senhor das moscas foi publicado no ano de 1954. O sucesso da publicação
demorou, mas veio. Reverenciado como um dos clássicos da literatura do
pós-guerra, a narrativa alegórica de Golding apresenta a história de crianças perdidas
em uma ilha deserta sem a presença de adultos. Livres, elas tentaram se organizar.
No entanto, a desordem logo desabrochou e os conflitos pessoais se multiplicaram.
Mortes aconteceram. Creio que este instigante romance infanto-juvenil evidencia
o quanto a experiência acumulada tem a nos ensinar. No contexto deste ensaio, a
experiência histórica. Se o futuro não existe e o presente é tão diminuto, é nas
entranhas do passado que o homem deve buscar referências que o orientarão na
arte do viver bem consigo e com os outros da mesma espécie. Portanto, História
é para maduros e para os que desejam amadurecer. Sem ela, seremos tal como
crianças desorientadas a repetir os equívocos de outrora.
Vedran Smailovic (1956- ) a tocar solitário seu violoncelo
nas ruínas da Biblioteca de Sarajevo (1992). O passado sempre será maior que o
historiador. A partir das ruínas daquele, este tentará estabelecer uma narrativa
que harmonize os elementos que têm mãos. Do que há de mais horrendo ao mais
belo na trajetória humana, tudo é de interesse do historiador que, protegido
dos rompantes ideológicos, dará um parecer ético e plausível sobre os assuntos
que pesquisa. Mesmo que poucos queiram ouvi-lo ou lê-lo, mesmo que o mundo ao
seu redor desabe sob ataque cerrado do integrismo infantil e vaidoso, ele
continuará (Imagem disponível em <https://en.wikipedia.org/wiki/Vedran_Smailovi%C4%87#/media/File:Evstafiev-bosnia-cello.jpg>).
Por
que estudar História? A pergunta feita pelo renomado historiador espanhol José
Enrique Ruiz-Domènec (1948 - ) na primeira página de seu instigante livrinho El recto del historiador (2006) é a que
anuncia a parte final de minhas reflexões e complementa a que estampei no
título deste ensaio. A crescente onda de ataques a professores da área de
Ciências Humanas e mais especificamente aos que lecionam e pesquisam História
diz muito acerca do que estes propõem em seu trabalho: ir às profundezas do
tecido social, desatar seus nós mais recônditos e divulgar o que viram. Por
tanta ousadia, eles despertam a fúria dos que se apegam a certezas que mal
sustentam diante de uma argumentação minimamente incisiva. Semelhante ao
conhecido personagem do romance de Oscar Wilde (1854-1900), que se entregou aos
caprichos hedonísticos de sua eterna juventude, estes furiosos não suportam encarar
a decrepitude das certezas rasas que cultivam no coração. Com medo, preferem
que o historiador permaneça estático como um quadro esquecido na parede. Um
quadro que não desejam ver. Fascistas enrustidos e vaidosos que farão qualquer
coisa para manter de pé crenças construídas sobre areia (CASARA, 2016, p. 13).
Aos
que fazem ouvidos de mercador, não custa repetir: a História, assim como a
Filosofia, a Literatura, a Sociologia e as Artes, deve elevar o ser humano. Elevação
que se busca todos os dias através do trabalho de construção do conhecimento,
dentro e, sobretudo, fora das salas de aula. Esta é a sina dessas áreas do
saber e assim devem ser entendidas. Nenhum direito a menos, nenhum recuo a
mais. Uma revolução formidável que rapidamente nos colocaria em pé de igualdade
com as grandes potências mundiais em termos de produção científica, mas também
em termos de constituição de uma sociedade capaz de absorver as diferenças e
com elas aprender. Será que os educacionistas engravatados de Brasília lerão o
que aqui escrevi? Esperança singela que cultivo no coração. Idealismo na dose
certa não é pecado.
Infelizmente,
a régua e o bisturi das Ciências Exatas empunhados pelos defensores de uma
educação tecnicista sempre estão a medir e cortar a sangue frio as Ciências
Humanas (WOOD Jr., 2016) – que o diga a proposta unilateral de reforma do
Ensino Médio encaminhada a toque de caixa pelo Ministério da Educação ao
Congresso Nacional. Sem cerimônia, questiona-se a serventia delas com o uso
performático de expressões como "dinâmica de trabalho", "impacto
social" ou "projeção de mercado". Sutilmente, o incentivo à
criatividade é sufocado pela imposição do lucro como um bem incomparável, ainda
que pouquíssimos sejam os reais privilegiados. Ora, na condição de Ciência
Humana, a História serve aos seres humanos por lhes mostrar o quanto estes são
diversos, tanto para o bem quanto para o mal. Portanto, palmilhar cada momento
de nossa existência é a função maior do historiador, tanto no ensino quanto na
pesquisa. No mínimo, seus ensinamentos serão auxiliares providenciais no
desenvolvimento da escrita e da boa interpretação de textos na educação de
crianças, jovens e adultos (RÜSEN, 2010, p. 30). Ou alguém dúvida da
importância de tudo isso?
Da
política à economia, da arte aos sonhos, dos humores aos odores, da música à
alimentação, tudo que é humano me interessa como historiador. Tudo mesmo! Boa
parte de meus colegas assim pensa. Os grandes mestres deste nosso ofício nos
respaldam. Como tal, acredito que essa saudável premissa deva ser repetida como
um mantra até não mais sair das mentes das pessoas. Não sei se terei anos
suficientes nesta vida para estudar tudo que aguça minha curiosidade ou ler
todos os livros que se multiplicam com rapidez em um dos quartos de meu
apartamento, porém, sonhar não custa nada e sonhar é o que dá sentido à minha,
à sua, à nossa breve passagem por este mundo.
Bem,
se como historiador não tenho condições de produzir algo que auxilie ou mesmo solucione
as urgências práticas cotidianas, coloco-me na posição de estar entre os únicos
trabalhadores a ter em mãos a chance de atiçar a imaginação das pessoas e fazer
com que ergam suas cabeças do fundo da caverna que habitam para a exposição à
luz do conhecimento. Trabalho lento, artesanal, por vezes difícil, mas
necessário ao nosso crescimento e à vitória sobre o "consumismo de
linguagem" que transforma em verdade qualquer coisa repetida à exaustão
(TIBURI, 2016, p. 60). Se como humanos temos condições de aprender e ensinar e
a cada geração melhorar o que somos, não há dúvida de que a História é um dos
elementos-chave deste processo. Que um dia todos possam entender isso.
*
A
resposta à pergunta posta logo no título deste ensaio não pode ser outra: sim,
a História é importante. Diria mais: ela é fundamental. De acordo com o que
escrevi, fundamental por ser capaz de transmitir conhecimentos e fazer emergir outros
tantos novos. Esse é um bem de valor incomensurável. Coluna mestra do processo
civilizatório que nos torna humanos. Para a tristeza de almas sensíveis e
abertas ao conhecimento do outro, em uma época na qual a cultura da vaidade
prolifera no conforto plastificado dos salões de beleza, academias e farmácias,
a História perde seu espaço, pois não tonifica o corpo e sim a alma. Violência
simbólica explícita que grudou nos professores e pesquisadores desta área o
rótulo de doutrinadores a serviço de governos nefastos e totalitários (os defensores
vociferantes do famigerado Escola Sem
Partido estão aí e confirmam minhas palavras). Que Clio tenha piedade
deles, pois não sabem o que falam, escrevem e compartilham dia e noite nas
redes sociais. Com as palavras edificantes do professor Durval Muniz de
Albuquerque Jr. (1961- ) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN),
eu me despeço esperançoso:
[como historiador] Sou
rio, pois sei que meu saber é composto de muitos outros. Sei que não sou a
origem do meu saber, não sou o sujeito fundante da história que faço, sou
fundado por uma sociedade, por uma cultura, por formações discursivas, por
práticas de poder e linguagem, sou um estuário em que vêm desaguar muitos
arquivos. Exerço um ofício conforme regras que não são apenas estabelecidas por
mim, coerção de grupo, regras que se modificam com o tempo, mas sorrio porque
sei que, apesar de tudo isso, eu participo ativamente das invenções que faço
(ALBUQUERQUE Jr., 2007, p. 35).
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