sábado, 11 de fevereiro de 2017

Por que a História ainda é importante?
Palavras a novos historiadores

Professor Dr. Carlile Lanzieri Júnior (UFMT)


 
Queima de livros na Praça da Ópera em Berlim, Alemanha. Entre 10 de março e 21 de junho de 1933, em diversas cidades alemãs, seguidores do nazismo queimaram livros em locais públicos. As datas coincidem com a chegada de Adolf Hitler (1889-1945) ao poder. Um grande número de estudantes estava envolvido nessas ações cujo objetivo era eliminar toda forma de pensamento contrária ao regime recém instalado (Imagem disponível em <http://historiacomgosto.blogspot.com.br/2016/04/a-grade-queima-de-livros-de-berlim.html>).

            Na noite do dia 06 de outubro de 2016, participei da mesa redonda A história na era das incertezas, no Departamento de História da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT - Campus Cuiabá). Juntamente com a Professora Dra. Thaís Leão Vieira (UFMT - Campus Rondonópolis), apresentei minhas considerações sobre o papel do historiador diante do cenário político brasileiro atual. Duas horas de exposição e debates diante de uma plateia de cerca de 40 pessoas. Um número alto para uma atividade realizada no fim do semestre letivo com avaliações e trabalhos a bater na porta. O ponto principal de concordância entre mim e a minha colega de mesa: a passos largos o estreitamento intelectual e a cultura da vaidade que dia a dia nos consomem põem em cheque a existência das Ciências Humanas (ARMITAGE & GULDI, 2016, p. 22-25). Na esteira deste processo, a História parece sofrer ainda mais com os danos nefastos causados por este infeliz expurgo cujos retoques finais são dados por governantes que tem como lastro a naturalização de práticas fascistas. A fórmula que explica tudo isso: menos Ciências Humanas, menos democracia e tudo que ela representa (cf. NUSSBAUM, 2015).
            Entre o apagar das luzes do Auditório I do Instituto de Geografia, História e Documentação (IGHD) e o retorno para casa, iniciei uma viagem mental pelo ano de 2016, outro que entrará para a história como aquele que não terminou. Depois de tanto tempo com a atenção totalmente voltada para o estudo da História da Idade Média, percebi que boa parte do corrente ano fora entregue a reflexões acerca do papel do historiador na sociedade contemporânea assim como as razões que permitiram o crescimento de uma onda de críticas e perseguições contra ele. Algumas assumidamente violentas. A fogueira da intolerância fascista está acesa e não faltam mãos dispostas a trazer mais lenha. Sei que outros já percorreram esse caminho e produziram reflexões sobremaneiras melhores que aquelas que aqui irei propor. Todavia, dar-me-ei a permissão de dizer algo sobre a profissão que há tempos abracei, profissão que objetiva a transmissão e, sobretudo, a produção de conhecimento de maneira crítica e honesta. Com armas no chão e flores nas mãos, é preciso resistir sempre, com diálogo e perseverança, por mais herméticos que possam ser os interlocutores (TIBURI, 2016, p. 23-28).

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"[...] nunca regresso com o mesmo caráter com que saí de casa; algo do que já pusera em ordem é alterado, algo do que já conseguira eliminar, regressa" (LÚCIO ANEU SENECA, Cartas a Lucílio, Livro I, carta 7, 1, p. 14)

"Uma excelente máxima: pois sempre que o homem sábio se separa da multidão dos comuns, ele está acompanhado por uma multidão de nobres pensamentos, embora o ignorante pense que ele esteja ocioso por não fazer algo público" (GUILHERME DE CONCHES, Dragmaticon philosophiae, II, 1, p. 21).

            A solidão mencionada nas linhas e entrelinhas de uma das epístolas do filósofo estoico romano Lúcio Aneu Sêneca (4 a.C - 65 d.C) e nos escritos do mestre Guilherme de Conches (1090-1154) é a solidão que faz morada no coração dos historiadores, pelo menos daqueles que dignificam esta profissão. Não se trata aqui da solidão dos tolos desajustados ou dos antipáticos, mas da solidão contemplativa capaz de abrir veios para que os pensamentos possam fluir com a devida calma que os decibéis elevados da turba ensandecida não costumam permitir. Particularmente, não conheço maneira melhor para conseguir ler, pensar e escrever. Não necessariamente nesta ordem, mas na medida adequada.
            Pensar como todos pensam, seguir contente os movimentos do rebanho, curvar-se silencioso diante da voz do líder, estes não são os comportamentos esperados de um bom historiador. O distanciamento prudente permitido pela solidão contemplativa é sua companhia e invólucro protetor. A distância segura permitida pela solidão senequiana e do mestre de Conches mantém o historiador a salvo dos riscos de banalizar a realidade sob os efeitos nocivos de esquemas pré-fabricados (GINZBURG, 2001, p. 41). Às voltas com os próprios pensamentos e com os conhecimentos daqueles com os quais dialoga (letrados ou não), o historiador oferece seus préstimos à civilização. E assim ele faz História. Todavia, nem todos são (ou foram) adeptos de tais orientações. Sigo com dois exemplos que considero marcantes e ilustram a primeira parte de minhas argumentações. Vamos ao primeiro.
            Adolf Hitler e seus asseclas enlouquecidos usaram à exaustão a palavra "História". Sem remorso, pilharam o passado para legitimar a propaganda idológica do partido nazista que enfeitiçou milhões de pessoas que passaram a crer que estavam a fazer a história de um povo destinado a vencer e subjugar aqueles que consideravam inferiores (KOSELLECK, 2013, p. 221-222). Na voz desses personagens e de tantos outros entregues às carícias do totalitarismo a prometer dias melhores, o verbo "fazer" ganhou um sentido impositivo: a ação para obter ou corrigir algo com vistas a um futuro grandioso. Neste futuro de contornos bem definidos na teoria, estaria reestabelecido o rumo da nação outrora perdido. Infelizmente, não são poucos os que creem ser este o papel dos historiadores, filósofos e tantos outros pensadores ligados às Ciências Humanas. O brilho intenso da imaginação totalitária os cega (cf. RAZZO, 2016).
            Antes do próximo exemplo, pausa para uma necessária pergunta: será esta a História a emergir de nossas pesquisas com o intento de impor o que as pessoas devem fazer e/ou contra quem devem agir? A resposta é simples e deve ser escrita com letras garrafais: NÃO! Todos que se imaginaram capazes de "fazer história" em benefício de uma nova sociedade sustentados por engenhosas ideologias pseudorrevolucionárias realmente entraram para História, mas não da maneira como um dia desejaram (e isso vale para os nazistas, assim como para os comunistas, maoistas, fascistas, liberalistas e todos os outros puídos ideólogos que assim pensaram).
            O segundo exemplo. Da primeira metade do século XX para um episódio ainda bem fresco na memória de todos. Há poucos meses, os defensores de Donald Trump (1946- ), magnata intempestivo, midiático e fanfarrão recém-eleito presidente dos Estados Unidos da América, vigorosamente afirmavam que aquela vitória simbolizava o surgimento de um líder em condições de recuperar a grandeza econômica daquele país – Make America great again (Tornar a América grande novamente) foi o slogan da campanha vitoriosa de Trump. Grandeza vivida sobretudo nas décadas seguintes ao fim da II Guerra Mundial (1939-1945). Os "trinta anos gloriosos" ou "a era de ouro", como bem definiu Eric Hobsbawm (1917-2012) em seu livro clássico sobre o século XX (1995, p. 253-281). De forma explícita, messiânica até, dizem confiar que, sob a batuta do novo político mais importante do planeta, poderão voltar ao passado e reescrever (ou fazer) a própria história. Desta vez, de acordo com o final que estabeleceram como correto.
            Estaríamos diante do retorno da doutrina do destino manifesto cunhada nos EUA ainda na primeira metade do século XIX? Com grande receio, acredito que seja sim a resposta a esta nova indagação... Ao bailar faceiras sobre um campo minado, estas pessoas almejam um final que reestabelecerá a supremacia dos homens e das mulheres de pele branca, detentores pomposos de capital econômico e cultual que creem ter sido conspurcado por décadas de globalização que tomou de assalto o território norte-americano (HOBSBAWM, 2007, p. 52). Quem viver verá (cf. também <http://www.bbc.com/portuguese/38069641>). Confesso que fico sobremaneira triste por ver a que ponto alguns exemplares da espécie humana chegaram. Fora do armário, a eugenia volta faceira a arrastar correntes.
            Nos dois breves exemplos citados, o "fazer História" foi tomado como sinônimo da retomada de algo, a promessa de reviver ipsis litteris uma era de ouro outrora perdida. Sem dúvida, trata-se de uma concepção tacanha, injusta e distante da compreensão que aqui proponho. Com esses e outros tantos exemplos possíveis, fica patente que, em função de seus incontáveis pontos de entrada, o passado é facilmente manipulável: irá com todos que estiverem dispostos a seduzi-lo (JENKINS, 2014, p. 21). Destes, muitos podem acessá-lo e trabalhá-lo de acordo com suas intenções, boas ou ruins. Ter esse material em mãos é ter a chance de empunhar uma arma poderosa. Quando carregada com cartuchos de grosso calibre ideológico, dispara rajadas de verdades absolutas contra os que ousam cruzar seu caminho. Muitos tombaram pela ação daqueles que acreditavam fazer história. A bem da verdade, estes nunca a fizeram da maneira como intentaram, apenas deixaram seus rastros sujos de sangue e nenhuma glória para que os verdadeiros historiadores pudessem enfim compreender os significados de suas atitudes no tempo e no espaço. Isso sim é fazer História. História que se ensina, História que se escreve, História que nos permite a compreensão profunda de nossas conquistas e misérias. História indispensável que nos torna maduros pelo exercício contínuo da reflexão. Enfim, História que não destrói, mas que edifica a partir do trato com a diversidade e a procura pela verdade.

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            A História não é o passado. O passado não é a História. A História só passa a existir de fato quando os vestígios do passado são devidamente agrupados, interpretados e reinterpretados pelos historiadores – e outras pessoas que desejam dizer e escrever algo sobre a trajetória humana (GAY, 1990, p. 178). A partir de várias escolhas teórico-metodológicas possíveis, o historiador estabelece uma narrativa de síntese cujo objetivo central é explicar aspectos do passado humano (JENKINS, 2004, p. 24-26). A busca sincera pelo conhecimento é o instrumento de navegação que o guia nesta empreitada. Embora os vestígios de tempos pretéritos possam ser úteis para elucidar diversas questões, algumas de natureza pragmática, como a obtenção da dupla nacionalidade europeia ou o reconhecimento do território ocupado por uma comunidade quilombola, esta não pode ser a finalidade única ou a mais importante da História (OAKESHOTT, 2003, p. 45-46, 52-55 e 58-60). Acima de tudo, ela deve ser o desejo incessante pelo conhecimento das experiências humanas no tempo e no espaço. Há tempos, tatuei essa premissa na epiderme de minha alma. Das cores impressionantes da Capela Sistina à obscuridade de Aushchwitz, da genialidade de Caravaggio (1571-1610) à conduta totalitarista do camarada Mao (1893-1976) ou a linha dura seletiva de Carlos Alberto Brilhante Ustra (1932-2015), tudo que é do homem faz parte do metiê do historiador que tem o dever de nos lembrar o que somos e o que fizemos, de bom ou ruim. Qualquer tentativa de distorção com vistas a fomentar algum tipo de ideologia deverá ser encarada como um ato de desonestidade intelectual. Simples assim, meus caros.
            A condição humana é por demais complexa para ser tomada como pertença exclusiva do diminuto presente (RAZZO, 2016, p. 16 e 194). Com base nesta premissa e nas que estão dispostas nos parágrafos precedentes, confio que a História alarga continuamente nossa capacidade de compreender algumas das incontáveis nuances da aventura de nossa existência. Existência que se faz dentro de um todo maior, rico e controverso. Um todo do qual o historiador somente alcança pequenas partes, mesmo com décadas de labuta ininterrupta. Assim, o fazer História é um ato de ousadia, um rompimento com as amarras do tempo efêmero de nossas vidas cotidianas e uma abertura ao diálogo generoso com as inúmeras gerações que vieram antes, com suas saudáveis e necessárias convergências e divergências. Saber acumulado que resistiu ao tempo e do qual seria um equívoco abrir mão (SCRUTON, 2011, p. 124). O resultado esperado dessa elevação cidadã: conhecimento envolvido pelo manto acolhedor da tolerância e da democracia (NUSSBAUM, 2015, p. 11-12).
            Pelo que foi exposto até aqui, não há dúvidas de que a distinção entre passado e História não pode ser ignorada. Do mesmo modo deve ser pensada a influência das relações de poder deste e de outros tempos presentes sobre as indagações feitas aos vestígios do passado. Se as quantidades disponíveis destes vestígios nem sempre apresentam grandes transformações, por que as pesquisas não cessam? Por que os historiadores continuam a vasculhar arquivos vistos e revistos por tantos outros durante anos a fio? As respostas estão nas mudanças observadas no mundo que nos cerca. Demandas que hoje são fundamentais não o eram há duas ou três décadas. Demandas que eram inquestionáveis até há pouco tempo não são mais para os novos historiadores (os movimentos negro e feminista estão aí e não me deixam mentir). Assim, as indagações construídas nas investigações que surgem a todo momento permitem a proposição de reflexões novas e amadurecidas. Em perspectiva, essas novas reflexões dizem muito acerca da maneira como as investigações históricas foram desenvolvidas em outros contextos, pois o passado não existe independente do presente no qual o historiador está inserido (TROUILLOT, 2015, p. 15).
            Neste sentido, um outro exemplo didático interessante é a crise de refugiados que toma conta de boa parte dos países da Europa ocidental. No século XIX e na primeira metade do século XX, houve situações semelhantes. Como os governantes de então lidaram com elas? Que leis foram criadas ou revogadas para dar conta da nova realidade? Como as populações nativas lidaram com esses estrangeiros a se multiplicar pelas ruas? Como os defensores dos direitos humanos trataram os apátridas com os quais se depararam de uma hora para outra no auge do nacionalismo? (ARENDT, 1976, cap. 5). Vale repetir: a História ensina a pensar com base no conhecimento acumulado. E é justamente esse conhecimento maturado que traz à tona o fato de que a Europa sempre foi um território cortado por fluxos migratórios de variadas origens, que o Mediterrâneo é um mar cuja fácil navegação propicia conexões, e que qualquer análise genealógica mais profunda põe em cheque as afirmações dos que defendem a existência de uma cultura europeia erguida sobre pilares cristãos independentes da Ásia e da África (GEARY, 2005; GOODY, 2008, p. 11-36; SILVEIRA, 2009, p. 645-657; GUARINELLO, 2014, p. 47-57).
            Ao caminhar um pouco mais no tempo, é factível perguntar se analogias explicativas podem ser feitas entre o que hoje acontece em algumas regiões da Europa ocidental e o que ocorreu no Império Romano com as migrações germânicas apontadas por uma historiografia mais tradicional como as responsáveis diretas pelo fim trágico de um império um dia grandioso (GIBBON, 1989). As disputas entre França e Alemanha no contexto imperialista do século XIX e início do XX também influenciaram a maneira como os historiadores destes dois países enxergaram os supostos embates entre germânicos e romanos na Antiguidade (SILVA, 2008, p. 20-21). Como é possível observar, a História não se repete nem como farsa nem como tragédia. Ela simplesmente ensina, faz pensar duas ou mais vezes, afinal o passado é um manancial de informações e assim deve ser explorado. E o futuro? Como diz aquele velho ditado, este a Deus pertence. Até lá, a História e os historiadores terão como missão formar humanos reflexivos a lutar por um mundo melhor, com menos ideologias e mais ética e tolerância.

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            Observar as nuances da escrita dos historiadores, seus estilos, suas opções, suas referências historiográficas e afinidades intelectuais, enfim, sua época. Esses são procedimentos analíticos valiosos, pois tudo isso interfere nas narrativas e nas maneiras pelas quais estes profissionais reconstroem o passado (GAY, 1990, p. 17-31). Com efeito, os recônditos mais profundos da prática do historiador transformam-se também em fonte de pesquisa ao lado da documentação de época (ALBUQUERQUE, 2007, p. 21 e 24). Nesta toada, um completa o outro. Na verdade, um não existe sem o outro. Rever a formação e os percursos feitos pelos historiadores é reavivar como uma determinada época olhou para as que a precederam, é compreender como certos eventos foram agraciados com o selo de "históricos" a custa do silêncio providencial ou involuntário que cobriu outros tantos. O romancista russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881) diria se tratar de um encontro com a "paisagem interior", neste caso, a do historiador.
            Aos poucos, o próprio senso comum acadêmico fomentado pelo acúmulo prolongado de pesquisas acerca de um determinado assunto é desafiado e retirado de sua zona de conforto. Vale sempre lembrar que autores não são autoridades instituídas das quais irradiam verdades definitivas e defendidas por cerradas legiões de aliados prontos para o embate (LATOUR, 2011, p. 73-74). Pelo menos assim não deveria ser. As críticas e a autorreflexão existem para provocar e trazer à superfície novos veios de pesquisa, lançar luz sobre searas não percorridas ou percorridas a esmo (POPPER, 2007, p. 31, 39 e 50; RÜSEN, 2010, p. 55-56 2001, p. 25). E tudo deve ser devidamente registrado para que outros pesquisadores tenham acesso ao conhecimento produzido. Para uma melhor compreensão acerca da escrita dos profissionais da História e de tudo que a envolve, por favor, caro leitor, retorne aos primeiros parágrafos deste ensaio. Feita esta rápida digressão, retome a sequência deste ensaio.

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           Se o trabalho do historiador é escrever sobre o passado humano, a ele não é permitido um retorno literal a este. Triste sina? Nem tanto. Diferente do que o jovem Martin McFly e o Dr. Emmett Brown fizeram em De volta para o futuro [Back to the future (1985)], icônica trilogia do cinema norte-americano da década de 80 do século passado, o historiador é um prisioneiro de seu tempo. Ele jamais verá com os próprios olhos a grande maioria dos acontecimentos e personagens sobre os quais lê e escreve. Mas o que à primeira vista seria um problema incontornável, logo se transforma em um valioso benefício. Por gentileza, deixem os devaneios da ficção de lado e acompanhem a minha linha de raciocínio.
            O distanciamento imposto pelo acúmulo incessante do tempo consente ao historiador uma visão ampla dos fatos. No silêncio de um escritório ou em uma pequena mesa escondida no fundo de uma biblioteca, ele segue suas pistas sem ser incomodado pela truculência dos ancestrais da família Tennen (os impagáveis vilões do longa-metragem acima citado). Bem informado, ele sabe o que aconteceu antes, durante e depois, possibilidade vedada aos personagens com os quais lida, pois estes estarão sempre submetidos aos limites temporais da própria existência. Além disso, protegido pela distância, o historiador também tem livre acesso às diferentes maneiras pelas quais as lembranças acerca de um determinado acontecimento repercutiram em períodos posteriores sob a pena de outros historiadores, memorialistas e afins.
          Com essas múltiplas referências ao alcance das mãos, ou pelo menos uma parte delas, o historiador busca compreender a amplitude do contexto que tem diante de si e as prováveis razões que levaram os protagonistas de suas histórias a tomar ("escrever" ou "registrar" seriam aqui as palavras mais adequadas?) ou não determinadas decisões e a amplitude dos efeitos destas. Portanto, mesmo que a volta ao passado em uma máquina do tempo possa ser uma aventura tentadora a lotar salas de cinema mundo afora, ela nunca dará a seus corajosos tripulantes a compreensão profunda oferecida pelo contato direto com variegadas fontes históricas, primárias e secundárias. Deste modo, a viagem dos historiadores é em sua essência espiritual, e isso não é pouca coisa (GADDIS, 2003, p. 17-19 e 37-41).
            Depois de levantar pistas e compará-las, depois de ir ao encontro do que seus pares escreveram e indagá-los, o historiador traz à lume as suas argumentações. Estas jamais poderão ser um mero requentar de conhecimentos prontos ou a reafirmação de esquemas teóricos prévios, mas um acréscimo de novos obtidos a partir do diálogo com outros pesquisadores e das respostas que o próprio historiador produziu para as questões que propôs. Ao historiador está vedada a alternativa fácil e confortável de dizer que a natureza ou a intuição sozinhas lhe instruíram, pois sabe-se que é sobre a historiografia e a documentação de época que ele ampara suas teorias (GAY, 1990, p. 172; LATOUR, 2011, p. 150-151). Com o tempo, novos argumentos e demandas sociais tornarão uma pesquisa considerada de ponta parcial e datada. Este é o interminável ciclo virtuoso da História e das Ciências como um todo (GAY, 1990, p. 191). E quando se vislumbra ao longe o encerramento de uma pesquisa, outros horizontes de trabalho terão surgido (PROUST, 2014, p. 79-80 e 237). Assim foi e assim deve ser quando o assunto é a produção de conhecimento que nunca cessa de se aperfeiçoar e se multiplicar. Uma arte. Contudo, nada disso será possível sem o desenvolvimento de uma boa escrita.
            Desde os mestres antigos e medievais, a escrita de qualidade é uma das responsáveis por elevar a condição humana. Esteio do mundo civilizado, ela permite a reflexão constante e o aprofundamento das ideias em prol de argumentos consistentes e superação de opiniões elementares. Através da escrita, o conhecimento é transmitido às gerações seguintes. Sem dúvida, tarefas árduas, mas indispensáveis ao bem da sociedade. No caso específico do historiador, é na dedicação à escrita que ele amadurece suas ideias e absorve as de outrem. Pela escrita, ele igualmente se submete a uma saudável autocrítica. A boa escrita conduz cada etapa de seu trabalho. Não por um simples apelo à retórica, mas pelo desejo de clareza e convencimento diante dos que aceitam acompanhar seu raciocínio. Em termos complementares, a escrita é o exercício espiritual dos historiadores, é seu processo civilizador interno.
            Por último, mas não menos importante: um bom texto tem o condão de trazer a proscênio a maturidade intelectual de quem o elaborou. Maturidade que se faz com paciência e constantes leituras. Esta é uma das regras pétreas da formação do historiador, ou pelo menos assim deveria ser. Um texto confuso faz com que boas ideias se percam nos labirintos tortuosos do hermetismo (GAY, 1990, p. 171). Lamentavelmente, esta confusão impede que o historiador seja lido por seus pares, o que torna a ciência que faz uma ciência pela metade, uma vez que ela não conclui seu ciclo de vida que vai do autor ao leitor (LATOUR, 2011, p. 59 e 160).

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          "A Terra é azul" foram as palavras proferidas pelo cosmonauta soviético Yuri Alekseievitch Gagarin (1934-1968) logo após completar a primeira missão tripulada pela órbita terrestre há quase seis décadas. A frase formada pelas quatro palavras de Gagarin está no rol das que marcaram o breve século XX. Dita no auge da Guerra Fria (1945-1991), elas hoje me servem de inspiração para tocar em um tema que considero fundamental: a necessidade de se pensar e fazer uma História que vença os vícios de um localismo estéril e que se conecte com os grandes temas que pontuam os debates entre os principais centros de produção de conhecimento, dentro e fora do Brasil.

           Assim como o primeiro aventureiro do espaço a olhar para o planeta Terra como um todo, o historiador pode e deve fazer o mesmo ao puxar os fios de tramas do passado com o fito de tecer comparações, compreender as conexões entre os povos e as maneiras pelas quais estes se enxergam mutuamente. Movimentos migratórios, fronteiras, trocas econômicas e culturais, formas de trabalho livre e escravo, comportamento sexual, democracia, xenofobia e intolerância são apenas alguns exemplos de possíveis temas de pesquisa. Sem dúvida, uma significativa ampliação dos horizontes e um combate aos males advindos da pobreza da especialização incapaz de enxergar o que existe para além do próprio umbigo (cf. LATTIER, 2016).

           Nas três últimas décadas, as pesquisas alcançaram níveis de especialização tamanhos que não são lidas nem pelos próprios pares. Antes que alguma voz apressada se erga, é importante frisar que leituras feitas por razões institucionais, como qualificações e defesas de dissertações e teses, pareceres críticos para revistas não contam. Uma ida aos congressos realizados em nossa área permite esta triste constatação. Os recortes temáticos restritos são majoritários (ARMITAGE & GULDI, 2016, p. 102-103). O apelo ao micro tão em voga ao longo dos últimos trinta anos produziu efeitos colaterais com os quais temos que hoje conviver. Com os olhos fixos nas folhas das árvores, perdeu-se a noção da floresta. O grande público não especializado praticamente desconhece o que os historiadores profissionais produzem. O espaço aberto foi ocupado por economistas, cientistas políticos, jornalistas, entre outros.

            Diante deste quadro, apenas a autocrítica e a reelaboração das rotas permitirão que as pesquisas ganhem novo fôlego. Nesse ínterim, o contato com públicos mais amplos possibilitará a ruptura das amarras de um tacanho provincianismo intelectual a flertar com abordagens pobres e descritivas. Continuar a insistir neste estreitamento imediatista apenas nos tornará mais monoglotas no que se refere à humanidade, pois des te lado de cá da fronteira não seremos capazes de debater as demandas que hoje conectam o mundo (GINZBURG, 2000, p. 299).


Soldados alemães em trajes de inverno posam para foto aos pés da estátua de Armínio, o Querusco erguida na Floresta de Teutoburgo. De acordo com a tradição alemã, Armínio foi um dos primeiros líderes germânicos a desafiar e vencer o poderio militar romano ainda no século I. Sua figura foi resgatada séculos depois para servir de exemplo da longeva luta dos alemães contra seus inimigos franceses. Erguida estrategicamente na fronteira com a França no final do século XIX, o monumento é hoje um local de visitação turística, mas ainda guarda as lembranças de um passado no qual um mito foi criado para atender as demandas de políticas nacionalistas ultra belicosas (Imagem disponível em <http://i.imgur.com/Vkhd5PE.jpg>).

            História e poder caminham juntos. A bem da verdade, as relações de poder precedem a escrita da História e influenciam na seleção das fontes e nas interpretações a serem feitas. Silêncio e manipulação fazem parte deste jogo, que nem sempre põe em debate o fato de que a sobrevivência de um vestígio do passado não necessariamente indica a superioridade de um determinado evento ou personagem históricos (TROULLIOT, 2015, p. 28-30 e p. 47-51). Neste caso, há muito mais entre o céu e a terra do que nós reles mortais podemos imaginar. A História na qual acredito e defendo dia a dia dentro e fora da universidade não pode se curvar aos donos do poder, sejam eles de esquerda, centro ou direita, acadêmicos ou não.
            Sinceramente, fico preocupado quando vejo um estudante de História com uma camisa ligada a algum partido ou movimento político. Se sua visão de mundo for submissa à sua orientação político-partidária, ele sempre será parcial em suas análises. Sem fazer força, tampará o sol com a peneira das evidências distorcidas e dirá que análises que confrontam o que ele pensa são meros revisionismos historiográficos, intrigas de uma oposição elitista. Não fará boa História. Uma pena. O mea culpa feito pelo renomado historiador inglês Eric Hobsbawm (2002, p. 219-220) sobre o prolongado silêncio que manteve a respeito das atrocidades do regime soviético exemplifica a força irresistível das ideologias sobre o indivíduo, mesmo que este seja um dos historiadores mais bem sucedidos de nossa época.
            Discursos apologéticos são de fácil identificação. Normalmente, costumam simplificar a realidade em prol das supostas verdades que desejam impor aos leitores e cidadãos em geral. Fazem isso independente das variáveis contraditórias inerentes a qualquer contexto histórico (DOMENEC, 2006, p. 21 e p. 34). Perde a História, perde a humanidade, pois seguem a máxima de que doutrinar é preciso, produzir conhecimento não. Ser simpático a alguma causa ou partido político é um direito legítimo de qualquer indivíduo em uma sociedade democrática, seja ele quem for. Porém, ao escrever, o historiador deverá se policiar e buscar a verdade acima de tudo, doa a quem doer, custe o que custar. Se necessário for, corta-se na própria carne. Mentir e distorcer nunca. Propaganda não é a nossa missão.
            As relações de poder sobre as quais falei há pouco também existem na academia, esse reluzente palácio de cristal tantas e tantas vezes inexpugnável. Determinados autores são tratados como fontes que emanam verdades definitivas. Questioná-los é um sacrilégio que lançou boas pesquisas às chamas da fogueira do esquecimento. Algo semelhante pode ser dito em relação a temas consagrados como política e economia. Parece que apenas essas dimensões da vida humana são relevantes. Temas como música e alimentação, atividades humanas vitais, são raríssimos no Brasil. Boas críticas são saudáveis ao desenvolvimento do conhecimento histórico, assim como a ampliação do leque temático. Portanto, não se trata de ignorar as contribuições anteriores ou tecer comentários ácidos de teor pessoal, mas propor novas questões e manter o moto da pesquisa. E não há como escapar do fato de que o passado muda ao sabor dos ventos do presente que produz novas perguntas a serem feitas ao passado que permitirá novas respostas. Um ciclo virtuoso do conhecimento que indica que o passado é parte do próprio presente (ALBUQUERQUE, 2007, p. 33).
           Bem, se passado e presente constroem-se mutuamente, não há como fugir das demandas impostas pelas transformações vividas pelas sociedades. O que era importante para os historiadores das primeiras décadas do século XX não mais o é para os deste início de século XXI. Certamente, seremos revistos pelos historiadores dos próximos séculos. Não há como escapar. Este é o desenvolvimento natural da ciência que fazemos, uma ciência em ação que não segue uma highway cujo destino pode ser antevisto em um mapa aberto sobre a mesa antes da viagem, mas que promove avanços e recuos a fim de rever suas afirmações e como estas um dia ganharam corpo. Conhecer bons autores, compreender as facetas da historiografia e mergulhar na documentação são bons combates que impedirão o historiador de caminhar sozinho, de sobreviver a partir de opiniões ocas e infundadas.
            Escrito por Willian Golding (1911-1983), o livro O senhor das moscas foi publicado no ano de 1954. O sucesso da publicação demorou, mas veio. Reverenciado como um dos clássicos da literatura do pós-guerra, a narrativa alegórica de Golding apresenta a história de crianças perdidas em uma ilha deserta sem a presença de adultos. Livres, elas tentaram se organizar. No entanto, a desordem logo desabrochou e os conflitos pessoais se multiplicaram. Mortes aconteceram. Creio que este instigante romance infanto-juvenil evidencia o quanto a experiência acumulada tem a nos ensinar. No contexto deste ensaio, a experiência histórica. Se o futuro não existe e o presente é tão diminuto, é nas entranhas do passado que o homem deve buscar referências que o orientarão na arte do viver bem consigo e com os outros da mesma espécie. Portanto, História é para maduros e para os que desejam amadurecer. Sem ela, seremos tal como crianças desorientadas a repetir os equívocos de outrora.

Vedran Smailovic (1956- ) a tocar solitário seu violoncelo nas ruínas da Biblioteca de Sarajevo (1992). O passado sempre será maior que o historiador. A partir das ruínas daquele, este tentará estabelecer uma narrativa que harmonize os elementos que têm mãos. Do que há de mais horrendo ao mais belo na trajetória humana, tudo é de interesse do historiador que, protegido dos rompantes ideológicos, dará um parecer ético e plausível sobre os assuntos que pesquisa. Mesmo que poucos queiram ouvi-lo ou lê-lo, mesmo que o mundo ao seu redor desabe sob ataque cerrado do integrismo infantil e vaidoso, ele continuará (Imagem disponível em <https://en.wikipedia.org/wiki/Vedran_Smailovi%C4%87#/media/File:Evstafiev-bosnia-cello.jpg>).

            Por que estudar História? A pergunta feita pelo renomado historiador espanhol José Enrique Ruiz-Domènec (1948 - ) na primeira página de seu instigante livrinho El recto del historiador (2006) é a que anuncia a parte final de minhas reflexões e complementa a que estampei no título deste ensaio. A crescente onda de ataques a professores da área de Ciências Humanas e mais especificamente aos que lecionam e pesquisam História diz muito acerca do que estes propõem em seu trabalho: ir às profundezas do tecido social, desatar seus nós mais recônditos e divulgar o que viram. Por tanta ousadia, eles despertam a fúria dos que se apegam a certezas que mal sustentam diante de uma argumentação minimamente incisiva. Semelhante ao conhecido personagem do romance de Oscar Wilde (1854-1900), que se entregou aos caprichos hedonísticos de sua eterna juventude, estes furiosos não suportam encarar a decrepitude das certezas rasas que cultivam no coração. Com medo, preferem que o historiador permaneça estático como um quadro esquecido na parede. Um quadro que não desejam ver. Fascistas enrustidos e vaidosos que farão qualquer coisa para manter de pé crenças construídas sobre areia (CASARA, 2016, p. 13).
            Aos que fazem ouvidos de mercador, não custa repetir: a História, assim como a Filosofia, a Literatura, a Sociologia e as Artes, deve elevar o ser humano. Elevação que se busca todos os dias através do trabalho de construção do conhecimento, dentro e, sobretudo, fora das salas de aula. Esta é a sina dessas áreas do saber e assim devem ser entendidas. Nenhum direito a menos, nenhum recuo a mais. Uma revolução formidável que rapidamente nos colocaria em pé de igualdade com as grandes potências mundiais em termos de produção científica, mas também em termos de constituição de uma sociedade capaz de absorver as diferenças e com elas aprender. Será que os educacionistas engravatados de Brasília lerão o que aqui escrevi? Esperança singela que cultivo no coração. Idealismo na dose certa não é pecado.
            Infelizmente, a régua e o bisturi das Ciências Exatas empunhados pelos defensores de uma educação tecnicista sempre estão a medir e cortar a sangue frio as Ciências Humanas (WOOD Jr., 2016) – que o diga a proposta unilateral de reforma do Ensino Médio encaminhada a toque de caixa pelo Ministério da Educação ao Congresso Nacional. Sem cerimônia, questiona-se a serventia delas com o uso performático de expressões como "dinâmica de trabalho", "impacto social" ou "projeção de mercado". Sutilmente, o incentivo à criatividade é sufocado pela imposição do lucro como um bem incomparável, ainda que pouquíssimos sejam os reais privilegiados. Ora, na condição de Ciência Humana, a História serve aos seres humanos por lhes mostrar o quanto estes são diversos, tanto para o bem quanto para o mal. Portanto, palmilhar cada momento de nossa existência é a função maior do historiador, tanto no ensino quanto na pesquisa. No mínimo, seus ensinamentos serão auxiliares providenciais no desenvolvimento da escrita e da boa interpretação de textos na educação de crianças, jovens e adultos (RÜSEN, 2010, p. 30). Ou alguém dúvida da importância de tudo isso?
            Da política à economia, da arte aos sonhos, dos humores aos odores, da música à alimentação, tudo que é humano me interessa como historiador. Tudo mesmo! Boa parte de meus colegas assim pensa. Os grandes mestres deste nosso ofício nos respaldam. Como tal, acredito que essa saudável premissa deva ser repetida como um mantra até não mais sair das mentes das pessoas. Não sei se terei anos suficientes nesta vida para estudar tudo que aguça minha curiosidade ou ler todos os livros que se multiplicam com rapidez em um dos quartos de meu apartamento, porém, sonhar não custa nada e sonhar é o que dá sentido à minha, à sua, à nossa breve passagem por este mundo.
            Bem, se como historiador não tenho condições de produzir algo que auxilie ou mesmo solucione as urgências práticas cotidianas, coloco-me na posição de estar entre os únicos trabalhadores a ter em mãos a chance de atiçar a imaginação das pessoas e fazer com que ergam suas cabeças do fundo da caverna que habitam para a exposição à luz do conhecimento. Trabalho lento, artesanal, por vezes difícil, mas necessário ao nosso crescimento e à vitória sobre o "consumismo de linguagem" que transforma em verdade qualquer coisa repetida à exaustão (TIBURI, 2016, p. 60). Se como humanos temos condições de aprender e ensinar e a cada geração melhorar o que somos, não há dúvida de que a História é um dos elementos-chave deste processo. Que um dia todos possam entender isso.

*

            A resposta à pergunta posta logo no título deste ensaio não pode ser outra: sim, a História é importante. Diria mais: ela é fundamental. De acordo com o que escrevi, fundamental por ser capaz de transmitir conhecimentos e fazer emergir outros tantos novos. Esse é um bem de valor incomensurável. Coluna mestra do processo civilizatório que nos torna humanos. Para a tristeza de almas sensíveis e abertas ao conhecimento do outro, em uma época na qual a cultura da vaidade prolifera no conforto plastificado dos salões de beleza, academias e farmácias, a História perde seu espaço, pois não tonifica o corpo e sim a alma. Violência simbólica explícita que grudou nos professores e pesquisadores desta área o rótulo de doutrinadores a serviço de governos nefastos e totalitários (os defensores vociferantes do famigerado Escola Sem Partido estão aí e confirmam minhas palavras). Que Clio tenha piedade deles, pois não sabem o que falam, escrevem e compartilham dia e noite nas redes sociais. Com as palavras edificantes do professor Durval Muniz de Albuquerque Jr. (1961- ) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), eu me despeço esperançoso:

[como historiador] Sou rio, pois sei que meu saber é composto de muitos outros. Sei que não sou a origem do meu saber, não sou o sujeito fundante da história que faço, sou fundado por uma sociedade, por uma cultura, por formações discursivas, por práticas de poder e linguagem, sou um estuário em que vêm desaguar muitos arquivos. Exerço um ofício conforme regras que não são apenas estabelecidas por mim, coerção de grupo, regras que se modificam com o tempo, mas sorrio porque sei que, apesar de tudo isso, eu participo ativamente das invenções que faço (ALBUQUERQUE Jr., 2007, p. 35).

Referências Bibliográficas
ALBUQUERQUE Jr., Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado. Bauru: Edusc, 2007.
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WOOD Jr., Thomaz. A academia e seus comportamentos patológicos. Disponível na Internet em <http://www.ihu.unisinos.br/maisnoticias/noticias/562972-a-academia-e-seus-comportamentos-patologicos>. Acesso em 06 de dezembro de 2016.

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

O 7 A 1 NOSSO DE CADA DIA, ONTEM E HOJE


            15 meses depois do maior vexame do futebol brasileiro em uma Copa do Mundo, nossa seleção voltou a jogar no último dia 08 de outubro para iniciar a busca por uma vaga no próximo mundial a ser realizado na Rússia, em 2018. Em partida realizada em Santiago, capital do Chile, uma nova derrota, desta vez, para o vibrante selecionado local empurrado por uma torcida igualmente vibrante.

            Por mais que os grandes veículos de comunicação (leia-se Rede Globo de Televisão) tentem mostrar que esta última derrota e o 7 a 1 aplicado pela seleção alemã sobre a equipe brasileira em terras mineiras em 2014 foram pontos fora da curva (o início de uma preparação, um apagão), ambas dizem muito sobre o que somos, sobre os caminhos que escolhemos seguir nos últimos décadas.

            Ataque inoperante, meio de campo medíocre expõem nossa defesa e muito mais que a nudez de um rei enganado pela artimanha dos oportunistas de passagem. O 7 a 1 nosso de cada dia nos desnuda e se traduz na cultura do condomínio e do shopping center, do Rock In Rio Balada (RIR 2015, rir bastante!), na desvalorização do saber universitário, no distanciamento do mundo real edulcorado nas redes sociais, na indignação e humanitarismo seletivos (mãos cansadas ou ocupadas demais para bater panelas para o Cunha? Haitianos negros e pobres são refugiados assim como sírios brancos de boa formação acadêmica que aqui aportam?). E vamos que vamos.

*

Domingo, 13 de julho de 2014 (licença para o auto-plágio porque há algo além do campo e bola)

            Nos debates sobre o fim da Copa que tomaram conta dos diversos canis de televisão, o assunto é o mesmo: os motivos que levaram a Seleção Alemã de Futebol ao título do mundial realizado no Brasil. Como historiador, recorro aos testemunhos do passado para oferecer minha explicação, afinal, historia magistra vitae (ou não?).

            Há 20 anos, quando a Seleção Brasileira de Futebol conquistava nos EUA sua quarta Copa do Mundo depois de um longo e tenebroso jejum, o técnico Carlos Alberto Parreira desceu as escadas de acesso da tribuna de honra do estádio Rose Bowl com o tão cobiçado troféu FIFA nas mãos. Seguido pelos jogadores, Parreira oferecia o símbolo da conquista aos torcedores brasileiros mais próximos e dizia: "Pode tocar que é nossa!". Dedos anônimos se esticavam na esperança de se conectar ao troféu dourado tão esperado.

            Naquele momento e em outros anteriores, havia uma maior proximidade com a população que abraçou e apoiou o selecionado brasileiro em seus piores momentos. Lembremos da super goleada contra a Bolívia em Recife ainda pelas Eliminatórias para a Copa de 1994 e do nó tático sobre o Uruguai no Rio de Janeiro em tarde inspiradíssima do Baixinho Romário. A plenos pulmões, os torcedores gritaram "Brasil". Bem, não havia óculos Ray Ban para ajeitar, escova para não estragar e uniforme de grife para não sujar...


            No retorno triunfal depois da conquista de 1994, a Seleção se jogou nos braços do povo que a tomou com orgulho. Rojões cortavam os céus do país em um grito uníssono aos ouvidos do mundo: éramos novamente os reis do futebol, a pátria de chuteiras.

            Os anos se passaram, as conquistas se acumularam. Jogadores foram alçados à condição de celebridades acima do bem e do mal. Na proporção inversa, a proximidade de outrora transformou-se em distância. Midiáticos e multimilionários, muitos de nossos jogadores voltaram as costas para o povo, para os lugares de onde vieram e um dia viveram.

            Na Copa disputada em terras brasileiras (Copa que ainda não terminou para muita gente: alguém sabe dizer quando finalmente funcionará o VLT de Cuiabá?), a distância chegou ao extremo. Cercada de bajuladores ávidos por selfies cheias de sorrisos ensaiados e robustos pontos na audiência, a equipe nacional se desconectou de vez de sua realidade, da matriz cheia de vida cotidiana que gerou o nosso futebol. A lente de uma câmera tornou-se mais importante que um treino. No fim, tudo acaba em samba? Em pizza? Não, em balada!

            O "povo" que a aplaudia nossos craques reluzentes era formado por apresentadores globais de plástico, gente oportunista e sem alma que provavelmente nunca derramou uma lágrima pelo futebol, nunca pintou uma rua para a Copa ou queimou a pele sob o sol forte de um estádio de futebol nesse Brasil de meu Deus. Nas nababescas arenas padrão FIFA, as peles bem cuidadas, os caríssimos uniformes da Seleção, os óculos escuros milimetricamente colocados e os dentes clareados eram maioria. O jogo era um detalhe entre uma cerveja e outra comprada durante os noventa minutos de bola rolando.

            Enquanto isso, os alemães, futuros campeões mundiais, fizeram o caminho contrário. Conheceram nossa gente, a simplicidade de sua existência cotidiana. Em um mês no litoral da Bahia, aprenderam um pouco de nossa cultura. Cantaram e dançaram as nossas músicas! (não estou falando de sertanejo universitário, funk proibidão e outras coisas do gênero). Eles foram mais brasileiros do que a nossa seleção de vitrine. O resultado foi visto em campo entre os dias 12 de junho e 12 de julho: um bando de jogadores assustados, distante do título e de seu povo. Nossa força não estava mais com eles...

De volta ao presente dos presentistas


            Um novo prédio corta o céu. Condomínio fechado como as castas a se engalfinhas na Internet. Escolas que se fecham. Farmácias e salões de beleza que se multiplicam exponencialmente. O não-lugar nos consome. Por que melhorar coletivamente se posso pagar por aquilo que desejo? O barro pode ser comprado em uma bela caixa de acrílico, na sola dos pés jamais! Ciclovia? Apenas a que se vê pelo vidro do carro de portas hermeticamente lacradas. E as distâncias só continuam a aumentar. A que existe entre a Seleção Brasileira de Futebol e seu povo é simplesmente mais uma delas.

sábado, 3 de outubro de 2015


DOUTORES NA AREIA



Baseada em fatos surreais, a insólita história narrada a seguir aconteceu entre 11:19 e 11:51 da manhã do dia 02 de janeiro de 2014.

Antes de prosseguir, uma advertência ao caro corajoso leitor desse desabafo: qualquer semelhança desta história com algo que já tenha ouvido por aí, não é mera coincidência.

Como milhões de mineiros fazem no alvorecer de cada ano, entreguei-me às delícias do litoral... capixaba! Naquele dia, água de coco, milho verde e espetinho de camarão fizeram parte de minha dieta matinal.

Sob a sombra do guarda-sol e com uma fina camada de protetor solar que mal protegia minha pele dos agressivos raios solares daquela hora do dia, fui vencido pela vontade de me entregar a um preguiçoso cochilo.

Como se o tempo parasse ao meu redor, contemplei o mar antes de reclinar a cadeira. Corpo esticado e respiração lenta, mineiramente fechei os olhos.

No fundo, ouvia vozes perdidas de vendedores, anônimos em férias e crianças brincando pela areia.

De repente, uma voz se destacou na multidão. Pela clareza, era possível perceber que seu dono estava próximo. Infelizmente, muito próximo...

Tropegamente, abri os olhos. Inclinei a cabeça para frente e vi que o falante cidadão era um homem de meia-idade. Ostentando um ventre saliente, uma lata de cerveja e um par de óculos escuros cuja marca não consegui identificar, ele sacou a seguinte frase diante de três belas jovens de pele delicadamente bronzeada pelo sol:

"Legal! Em breve, todos irão chamar vocês de doutoras".

Logo percebi que o diálogo era travado entre um advogado e três estudantes de Direito. A frase proferida em alto e bom som me fez levantar a cadeira e calibrar os olhos e ouvidos para entender melhor a cena. O cochilo ficou para depois.

Na sequência, o adiposo desconhecido jogou no ar outra afirmação:

"Eu, por exemplo, assino todos os meus documentos usando 'doutor' antes do nome. Vocês poderão fazer o mesmo".

Intimamente, torci para que algum ambulante chamasse minha atenção e me desviasse de tal acontecimento bizarro. Nada aconteceu. Os minutos escorriam devagar e eu ali sentado com a indignação entre a língua, a saliva e os dentes. E ouvi mais:

"A obrigação de se chamar um advogado de doutor é baseada em duas leis: uma assinada por Dona Maria e outra por Dom Pedro I. Não posso fazer nada se essas leis nunca foram revogadas no Brasil".

Provavelmente, os olhos admirados das jovens escondiam o desejo de que o tempo passasse logo para que agarrassem o diploma. Com ele, desfrutariam do privilégio descrito pelo nobre colega de praia.

Sinceramente, meu desejo era caminhar até o grupo e dar uma pequena aula de história a cada um. Como não os conhecia, preferi me recolher no anonimato e despejar minha indignação neste pequeno muro de lamentações.

Já ouvi essas história centenas de vezes, porém, nunca com tamanhos rompantes de autoritarismo imbecil. Que a mentira seja combatida com os gládios da verdade. Vamos a ela.

O suposto decreto de Dona Maria I (1734-1816) determinava que todos os magistrados portugueses deveriam ser tratados como "doutores" em todas as partes do império português. Se realmente existiu, tal decreto perdeu a validade com a independência do Brasil em 1822. Questão absolutamente óbvia há quase duzentos anos.

O documento assinado por Dom Pedro I (179-1834) ainda no Primeiro Reinado brasileiro (1822-1831) é o novo trunfo dos defensores da rocambolesca teoria. Quem se agarra a tal mito se esquece de analisar com um mínimo de tecitura as bases sobre as quais o sistema republicano foi erguido em nosso país: entre elas, a cidadania e a igualdade de direitos para todos perante a lei. Embora estes ainda não sejam plenamente respeitados, juridicamente acabaram com qualquer diferença de casta e nascimento que existiu ao longo do Império. Ou seja, apenas o mérito diferenciaria as pessoas. Todos os títulos de nobreza caíram por terra e nenhum outro existente poderia ser vendido.

Vale lembrar que, com a gradual estruturação do ensino universitário e dos cursos de pós-graduação ao longo do século XX, o mérito acadêmico tornou-se o único meio vigente para se obter qualquer titulação em nosso país (mestrado, doutorado e pós-doutorado).

Sob tortura, os documentos históricos dizem qualquer coisa, inclusive mentiras. Quem os tortura tenta relacionar a o passado aos próprios interesses, usa da força e da boa fé das pessoas para galgar patamares mais elevados dentro da sociedade. Já vi advogados, médicos, bioquímicos, dentistas, fonoaudiólogos, fisioterapeutas, psicólogos, engenheiros e veterinários (é, até veterinários!) exigindo o uso de tal honraria: serem chamados de "Doutor" Fulano de Tal. Nunca vi doutores de fato e de direito fazendo o mesmo. Aqueles que realmente desejam esse tipo de tratamento, deveriam fazer o caminho correto: estudar, concluir a graduação; estudar mais, fazer os dois anos obrigatórios do mestrado e os quatro igualmente obrigatórios do doutorado.

Talvez o cidadão com o IMC fora dos padrões recomendados pela OMS que arrastava sua fanfarronice diante das encantadoras beldades de verão nunca leia o que escrevi... Talvez ele nunca se desapegue dessas certezas que certamente o acompanharão nos próximos janeiros. Disso tudo levo uma certeza: os minutos de distração voluntária me fizeram crer mais ainda que o filtro solar é indispensável nesses dias de verão escaldante.