DOUTORES NA AREIA
Baseada em fatos surreais, a insólita história narrada a seguir aconteceu entre 11:19 e 11:51 da manhã do dia 02 de janeiro de 2014.
Antes de prosseguir, uma advertência ao caro corajoso leitor desse desabafo: qualquer semelhança desta história com algo que já tenha ouvido por aí, não é mera coincidência.
Como milhões de mineiros fazem no alvorecer de cada ano, entreguei-me às delícias do litoral... capixaba! Naquele dia, água de coco, milho verde e espetinho de camarão fizeram parte de minha dieta matinal.
Sob a sombra do guarda-sol e com uma fina camada de protetor solar que mal protegia minha pele dos agressivos raios solares daquela hora do dia, fui vencido pela vontade de me entregar a um preguiçoso cochilo.
Como se o tempo parasse ao meu redor, contemplei o mar antes de reclinar a cadeira. Corpo esticado e respiração lenta, mineiramente fechei os olhos.
No fundo, ouvia vozes perdidas de vendedores, anônimos em férias e crianças brincando pela areia.
De repente, uma voz se destacou na multidão. Pela clareza, era possível perceber que seu dono estava próximo. Infelizmente, muito próximo...
Tropegamente, abri os olhos. Inclinei a cabeça para frente e vi que o falante cidadão era um homem de meia-idade. Ostentando um ventre saliente, uma lata de cerveja e um par de óculos escuros cuja marca não consegui identificar, ele sacou a seguinte frase diante de três belas jovens de pele delicadamente bronzeada pelo sol:
"Legal! Em breve, todos irão chamar vocês de doutoras".
Logo percebi que o diálogo era travado entre um advogado e três estudantes de Direito. A frase proferida em alto e bom som me fez levantar a cadeira e calibrar os olhos e ouvidos para entender melhor a cena. O cochilo ficou para depois.
Na sequência, o adiposo desconhecido jogou no ar outra afirmação:
"Eu, por exemplo, assino todos os meus documentos usando 'doutor' antes do nome. Vocês poderão fazer o mesmo".
Intimamente, torci para que algum ambulante chamasse minha atenção e me desviasse de tal acontecimento bizarro. Nada aconteceu. Os minutos escorriam devagar e eu ali sentado com a indignação entre a língua, a saliva e os dentes. E ouvi mais:
"A obrigação de se chamar um advogado de doutor é baseada em duas leis: uma assinada por Dona Maria e outra por Dom Pedro I. Não posso fazer nada se essas leis nunca foram revogadas no Brasil".
Provavelmente, os olhos admirados das jovens escondiam o desejo de que o tempo passasse logo para que agarrassem o diploma. Com ele, desfrutariam do privilégio descrito pelo nobre colega de praia.
Sinceramente, meu desejo era caminhar até o grupo e dar uma pequena aula de história a cada um. Como não os conhecia, preferi me recolher no anonimato e despejar minha indignação neste pequeno muro de lamentações.
Já ouvi essas história centenas de vezes, porém, nunca com tamanhos rompantes de autoritarismo imbecil. Que a mentira seja combatida com os gládios da verdade. Vamos a ela.
O suposto decreto de Dona Maria I (1734-1816) determinava que todos os magistrados portugueses deveriam ser tratados como "doutores" em todas as partes do império português. Se realmente existiu, tal decreto perdeu a validade com a independência do Brasil em 1822. Questão absolutamente óbvia há quase duzentos anos.
O documento assinado por Dom Pedro I (179-1834) ainda no Primeiro Reinado brasileiro (1822-1831) é o novo trunfo dos defensores da rocambolesca teoria. Quem se agarra a tal mito se esquece de analisar com um mínimo de tecitura as bases sobre as quais o sistema republicano foi erguido em nosso país: entre elas, a cidadania e a igualdade de direitos para todos perante a lei. Embora estes ainda não sejam plenamente respeitados, juridicamente acabaram com qualquer diferença de casta e nascimento que existiu ao longo do Império. Ou seja, apenas o mérito diferenciaria as pessoas. Todos os títulos de nobreza caíram por terra e nenhum outro existente poderia ser vendido.
Vale lembrar que, com a gradual estruturação do ensino universitário e dos cursos de pós-graduação ao longo do século XX, o mérito acadêmico tornou-se o único meio vigente para se obter qualquer titulação em nosso país (mestrado, doutorado e pós-doutorado).
Sob tortura, os documentos históricos dizem qualquer coisa, inclusive mentiras. Quem os tortura tenta relacionar a o passado aos próprios interesses, usa da força e da boa fé das pessoas para galgar patamares mais elevados dentro da sociedade. Já vi advogados, médicos, bioquímicos, dentistas, fonoaudiólogos, fisioterapeutas, psicólogos, engenheiros e veterinários (é, até veterinários!) exigindo o uso de tal honraria: serem chamados de "Doutor" Fulano de Tal. Nunca vi doutores de fato e de direito fazendo o mesmo. Aqueles que realmente desejam esse tipo de tratamento, deveriam fazer o caminho correto: estudar, concluir a graduação; estudar mais, fazer os dois anos obrigatórios do mestrado e os quatro igualmente obrigatórios do doutorado.
Talvez o cidadão com o IMC fora dos padrões recomendados pela OMS que arrastava sua fanfarronice diante das encantadoras beldades de verão nunca leia o que escrevi... Talvez ele nunca se desapegue dessas certezas que certamente o acompanharão nos próximos janeiros. Disso tudo levo uma certeza: os minutos de distração voluntária me fizeram crer mais ainda que o filtro solar é indispensável nesses dias de verão escaldante.
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